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A Apostasia e a Perseverança dos Santos: Quem Realmente Abandona a Fé?

 


A Apostasia e a Perseverança dos Santos: Quem Realmente Abandona a Fé?

Uma análise bíblica e reformada sobre a natureza da apostasia, destacando que os verdadeiros eleitos de Deus jamais se desviam fatalmente, mas que tal ato é característico daqueles que, como o joio no meio do trigo, estiveram na igreja, mas nunca pertenceram a Cristo.

A questão da apostasia, ou o abandono da fé, tem sido um tema de intenso debate e preocupação ao longo da história da Igreja. A visão de indivíduos que um dia professaram a fé em Cristo e, posteriormente, a rejeitam publicamente pode ser desconcertante. No entanto, uma análise aprofundada das Escrituras, sob a ótica da teologia reformada, revela uma verdade consoladora e teologicamente robusta: os verdadeiros eleitos de Deus, aqueles genuinamente regenerados pelo Espírito Santo, perseverarão na fé até o fim e não cometerão apostasia. O ato de apostatar, portanto, é a manifestação final de uma fé que nunca foi verdadeira, a revelação do "joio" que cresceu junto ao "trigo" na congregação visível.

A própria definição de apostasia, em seu sentido mais grave, aponta para uma rejeição consciente e deliberada de Cristo e de Sua obra. Não se trata de um crente que luta contra o pecado, que tropeça e cai, mas daquele que vira as costas de forma definitiva para a verdade que um dia professou. Conforme destaca o teólogo Richard D. Phillips, ao comentar Hebreus 10:29, a apostasia envolve uma tríplice e gravíssima rejeição:

"primeira, a pessoa de Cristo como o Filho de Deus ('aquele que calcou aos pés o Filho de Deus'); segunda, a obra salvadora de Cristo na cruz ('e profanou o sangue da aliança com o qual foi santificado'); terceira, o Espírito Santo que trouxe o evangelho ('e ultrajou o Espírito da graça')."

Esta passagem de Hebreus é crucial para compreendermos a seriedade e a natureza da apostasia. O apóstata não é alguém que simplesmente se desviou por fraqueza, mas alguém que ativamente despreza o sacrifício de Cristo e insulta o Espírito da graça.

O Engano dos Milagres: "Nunca Vos Conheci"

Uma das advertências mais sóbrias de Jesus sobre a falsa profissão de fé encontra-se em Mateus 7:22-23:

"Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade."

Este texto é chocante e fundamental. Ele demonstra que a apostasia pode ser praticada por pessoas que não apenas frequentaram a igreja, mas que foram instrumentos de manifestações espirituais extraordinárias. Eles profetizaram, expulsaram demônios e realizaram milagres, tudo "em nome de Jesus". Aos olhos humanos, eles seriam considerados cristãos exemplares e poderosos.

No entanto, a resposta de Cristo é devastadora: "nunca vos conheci". Ele não diz "Eu vos conheci, mas vocês me abandonaram". A questão central não é a perda de um relacionamento, mas a ausência total dele desde o princípio. A fé deles era baseada em obras e manifestações externas, e não em um conhecimento íntimo e salvífico de Cristo. A prática da "iniquidade" revela a verdadeira natureza de seus corações, que nunca foram regenerados. Este é o perfil do apóstata: alguém que pode ter uma aparência de piedade e poder, mas que nunca teve um relacionamento genuíno com o Salvador.

Os Estágios da Fé Aparente: A Parábola do Semeador

A Parábola do Semeador (Mateus 13:1-23) aprofunda nossa compreensão sobre como uma pessoa não eleita pode chegar a estágios avançados de uma fé aparente, antes de finalmente se desviar. Jesus descreve três tipos de solo que não produzem frutos permanentes, ilustrando três tipos de "conversões" que não são genuínas:

1.    O Solo Rochoso: "O que foi semeado em solo rochoso, esse é o que ouve a palavra e logo a recebe com alegria; mas não tem raiz em si mesmo, sendo, antes, de pouca duração; e, chegando a angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandaliza." Este é o retrato da pessoa que tem uma resposta emocional e imediata ao evangelho. Há alegria, entusiasmo e uma aceitação inicial. Contudo, a fé não tem profundidade, não tem raiz. Quando as dificuldades e a perseguição surgem — testes inevitáveis da fé verdadeira — ela murcha e morre. Essa pessoa nunca foi verdadeiramente convertida; sua "fé" era superficial e circunstancial.

2.    O Solo entre Espinhos: "O que foi semeado entre os espinhos é o que ouve a palavra, porém os cuidados do mundo e a fascinação das riquezas sufocam a palavra, e fica infrutífera." Aqui vemos um estágio ainda mais avançado. A pessoa não apenas recebe a palavra, mas convive com ela por um tempo. No entanto, o amor pelo mundo, as preocupações materiais e a busca por riquezas se tornam mais fortes. A palavra é sufocada e não produz o fruto da justiça. Essa pessoa pode permanecer na igreja por anos, parecendo um crente, mas seu coração pertence a este mundo. Sua eventual apostasia é a vitória dos "espinhos" sobre uma semente que nunca criou raízes profundas em um coração transformado.

Ambos os casos ilustram perfeitamente o perfil do apóstata: indivíduos que tiveram um contato significativo com o evangelho, mas em quem a semente da Palavra nunca germinou para a vida eterna.

O Trigo e o Joio: A Realidade da Igreja Visível

A parábola do trigo e do joio, narrada por Jesus em Mateus 13:24-30 e explicada nos versículos 36-43, oferece uma ilustração clara da coexistência de verdadeiros crentes e falsos professos dentro da igreja visível. O "trigo" representa os "filhos do Reino", enquanto o "joio", semeado pelo inimigo, são os "filhos do maligno". Ambos crescem juntos no mesmo campo (o mundo, e por extensão, a igreja) até o tempo da ceifa, quando serão separados.

Esta parábola nos ensina que a presença de pessoas não convertidas na igreja é uma realidade. Eles podem participar das atividades, conhecer a doutrina e até mesmo demonstrar dons espirituais aparentes, mas seus corações nunca foram verdadeiramente transformados. A apostasia, nesse contexto, é o momento em que a verdadeira natureza do joio se torna evidente.

O apóstolo João aborda essa questão de forma direta em sua primeira epístola: "Eles saíram do nosso meio, mas na realidade não eram dos nossos, pois, se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco; o fato de terem saído mostra que nenhum deles era dos nossos" (1 João 2:19). A saída, a apostasia, não é a causa da perdição, mas a evidência de que nunca houve uma união vital com Cristo. Como afirma o puritano John Owen, "A apostasia não é a queda de um estado de graça, mas a descoberta de um estado de hipocrisia."

A Perseverança dos Santos: A Segurança do Eleito

Em contraste com a fé temporária do joio e dos solos infrutíferos, a doutrina da perseverança dos santos afirma que aqueles a quem Deus elegeu, chamou eficazmente e regenerou pelo Seu Espírito, serão infalivelmente guardados no estado de graça. Esta segurança não repousa na força do crente, mas no poder de Deus. Jesus declara em João 10:27-29: "As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão."

E o caso de Judas?

A análise da natureza da fé de Judas Iscariotes à luz das Escrituras revela consistentemente que ele nunca foi um verdadeiro discípulo eleito e salvo, mas sim um homem ímpio cuja traição foi a manifestação final de sua incredulidade. Diversos elementos bíblicos sustentam essa conclusão:

1. Jesus Sabia Desde o Início:

Desde a escolha dos doze apóstolos, Jesus já tinha pleno conhecimento da natureza de Judas. O Evangelho de João declara explicitamente: "Respondeu-lhes Jesus: Não escolhi eu os doze? Contudo, um de vós é um diabo. Referia-se a Judas, filho de Simão Iscariotes, porque era ele quem o havia de trair, sendo um dos doze." (João 6:70-71). Esta afirmação demonstra que a traição de Judas não foi uma falha inesperada de um verdadeiro seguidor, mas um plano divino previsto e conhecido por Jesus desde o princípio. A designação de "diabo" aqui não significa possessão demoníaca contínua, mas sim a sua natureza intrinsecamente maligna e o papel que desempenharia nos propósitos de Satanás.

2. O Roubo das Ofertas: Uma Indicaçao de Não Conversão:

O Evangelho de João também revela o caráter ganancioso e desonesto de Judas bem antes da traição: "Ora, ele [Judas] disse isto, não por se importar com os pobres, mas porque era ladrão e, tendo a bolsa, desviava o que nela se lançava." (João 12:6). O fato de Judas roubar as ofertas destinadas aos pobres demonstra uma falta de genuíno temor a Deus e de amor ao próximo, marcas características de uma pessoa não convertida. Essa atitude revela um coração voltado para os seus próprios interesses egoístas, em contraste com os princípios do Reino de Deus. Este comportamento pecaminoso constante é um forte indicativo de que a transformação do coração operada pelo Espírito Santo nunca ocorreu em Judas.

3. Jesus o Chama de "Filho da Perdição":

No contexto da oração intercessória, após a saída de Judas do cenáculo para consumar a traição, Jesus se refere a ele como o "filho da perdição": "Quando eu estava com eles, eu os guardava em teu nome, o nome que me deste. Eu os protegi, e nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura." (João 17:12). Esta designação é extremamente significativa. "Filho de" em hebraico e aramaico frequentemente denota características inerentes ou um destino inevitável. Chamar Judas de "filho da perdição" implica que a perdição era a sua natureza e o seu destino predeterminado, alinhado com as profecias das Escrituras. Se Judas fosse um verdadeiro eleito que perdeu a salvação, essa designação seria inapropriada. Em vez disso, ela aponta para alguém cuja trajetória sempre esteve rumo à condenação.

4. A Ausência de Frutos de Arrependimento Genuíno:

Após a traição, Judas experimentou remorso, mas não um arrependimento genuíno que conduz à fé e ao perdão. Mateus relata: "Então Judas, o que o havia traído, vendo que Jesus fora condenado, sentiu remorso e devolveu as trinta moedas de prata aos principais sacerdotes e aos anciãos, dizendo: Pequei, traindo sangue inocente. Eles, porém, disseram: Que nos importa? Isso é problema teu. E, jogando as moedas no santuário, retirou-se e foi enforcar-se." (Mateus 27:3-5). O remorso de Judas era focado nas consequências de seus atos, e não em um quebrantamento genuíno diante de Deus pelo pecado cometido contra Cristo. Sua reação final de suicídio é mais um indicativo de sua falta de fé salvadora e de esperança no perdão divino.

Com base nessas evidências bíblicas, conclui-se que Judas Iscariotes nunca foi um verdadeiro eleito ou salvo. Jesus o conhecia como um "diabo" desde o início, seu comportamento ladrão revelava um coração não transformado, ele foi designado por Jesus como o "filho da perdição", e seu remorso pós-traição não evidenciou arrependimento genuíno. Judas é, portanto, um exemplo bíblico claro de alguém que esteve próximo de Jesus e dos discípulos, mas que nunca pertenceu verdadeiramente ao Reino de Deus. Sua apostasia final foi a consumação de sua impiedade preexistente. Ele se encaixa perfeitamente na figura do "joio" no meio do "trigo", presente na igreja visível, mas destinado à separação final.

Conclusão: Uma Chamada ao Autoexame e à Confiança

A compreensão bíblica da apostasia nos livra de dois extremos perigosos: a falsa segurança presunçosa e o medo paralisante. Por um lado, ela nos conclama a um sincero autoexame (2 Coríntios 13:5), pois a verdadeira fé se manifesta em frutos de arrependimento e um relacionamento genuíno com Cristo, não apenas em obras externas.

Por outro lado, para o crente que luta sinceramente e confia em Cristo, esta doutrina é uma fonte de profundo consolo. Nossa perseverança não depende de nossa força, mas da fidelidade de um Deus que prometeu completar a boa obra que começou em nós (Filipenses 1:6). A apostasia, portanto, não é a história de um verdadeiro crente que se perdeu, mas a triste revelação daqueles que, embora tenham estado entre nós, e até realizado milagres, nunca foram verdadeiramente conhecidos por Cristo.

Referências Bibliográficas:

  • PHILLIPS, Richard D. Estudos Bíblicos Expositivos em Hebreus: Como Enfrentar os Desafios e Armadilhas do Mundo Confiando na Supremacia de Cristo. Tradução de Deuber de Souza Calaça e Edmilson Francisco Ribeiro. 1ª edição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2018.
  • CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã.
  • OWEN, John. Apostasy from the Gospel.

 

 


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