Introdução: Entre a Admiração e a Idolatria
Por
séculos, a figura de Maria (mãe de Jesus) foi progressivamente elevada de
humilde serva do Senhor a Rainha do Céu, obscurecendo doutrinas centrais
da fé cristã. Ao analisar o que a Palavra de Deus de fato diz reafirmamos
que a verdadeira honra a Maria não está em lhe dirigir orações, mas em
imitar sua fé submissa, que exalta unicamente a "Deus, meu
Salvador”.
A
discussão sobre Maria raramente é apenas sobre ela. Historicamente, a
mariologia tem sido um campo onde se travam batalhas sobre doutrinas centrais
como a natureza de Cristo (Cristologia), a salvação (Soteriologia) e a
autoridade das Escrituras (Sola Scriptura). A rejeição protestante à mediação
de Maria, por exemplo, não é um ataque à sua pessoa, mas uma defesa da
suficiência de Cristo como único mediador (Solus Christus).
O
Retrato de Maria nas Sagradas Escrituras: A Serva Agraciada
Para
uma teologia que se fundamenta no princípio Sola Scriptura, a análise
deve começar e terminar com o testemunho da Palavra de Deus.
- A Anunciação: Fé,
Submissão e Graça (Lucas 1:26-38) No encontro com o anjo
Gabriel, a saudação "Salve, agraciada" (Lc 1:28) é fundamental.
O termo grego, kecharitōmenē, não denota uma fonte de graça, mas o
status de alguém que foi objeto passivo do favor imerecido de Deus. Ela é
"aquela que recebeu graça", não aquela que a concede. A graça
não se origina nela, mas é concedida a ela.
Sua
resposta define seu caráter: "Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim
segundo a tua palavra" (Lc 1:38). Esta é uma declaração de submissão
piedosa à vontade soberana de Deus.
- O Cântico de uma
Pecadora Salva (Lucas 1:46-55) O cântico de Maria é
inteiramente focado em Deus. Suas primeiras palavras são a chave para sua
autopercepção: "A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito
se alegrou em Deus, meu Salvador" (Lc 1:46-47).
Ao
chamar Deus de seu "Salvador", Maria se posiciona, inequivocamente,
entre aqueles que necessitam de salvação. Ela se reconhece como uma pecadora
que, como todos os descendentes de Adão, depende da graça redentora. Este
versículo, por si só, representa um ataque direto à doutrina da Imaculada
Conceição, que não tem respaldo bíblico. Maria é o instrumento humilde, não a
fonte da bênção.
- Maria no
Ministério de Jesus: Discípula e Mãe
- As Bodas de Caná
(João 2:1-11): A instrução de Maria aos servos —
"Fazei tudo quanto ele vos disser" (Jo 2:5) — é profundamente
significativa. Ela não se apresenta como intercessora, mas aponta
diretamente para a autoridade e suficiência de Cristo. A resposta de
Jesus, "Mulher, que tenho eu contigo?" (Jo 2:4), embora não
seja rude, estabelece uma clara distinção entre sua relação familiar e
sua missão messiânica.
- Aos Pés da Cruz
(João 19:25-27): Ali, Jesus confia o cuidado de sua
mãe ao apóstolo João. A teologia reformada interpreta este ato
primariamente como um ato de piedade filial de um filho que cumpre seu
dever para com sua mãe. A razão pela qual Jesus a confia a João, e não a
seus próprios irmãos, é que, naquele momento, seus irmãos ainda não criam
nele (cf. João 7:5).
Mãe de
uma Família: Os Irmãos de Jesus
Embora
a tradição posterior tenha desenvolvido a doutrina da virgindade perpétua de
Maria, os relatos dos Evangelhos apresentam um quadro diferente, sugerindo que,
após o nascimento virginal de Jesus, Maria e José tiveram uma vida conjugal
normal e outros filhos.
As
Escrituras mencionam os irmãos de Jesus de forma direta e natural. Em Nazaré, o
povo questionava: "Não é este o carpinteiro, filho de Maria e irmão de
Tiago, José, Judas e Simão? E não estão aqui conosco suas irmãs?" (Marcos
6:3; cf. Mateus 13:55-56). O texto não apenas cita "irmãos", mas os
nomeia, além de mencionar a existência de "irmãs", indicando uma
família conhecida na comunidade. Esses mesmos "irmãos" são
mencionados em outras passagens, como em João 7:5 e Atos 1:14.
Além
disso, o Evangelho de Mateus descreve o início do casamento de Maria e José de
forma clara: José "...a recebeu como esposa. Contudo, não teve relações
com ela até que deu à luz o filho" (Mateus 1:24-25). A expressão
"até que" (heōs hou em grego), em sua leitura mais natural,
implica que a abstenção de relações conjugais tinha um propósito específico —
garantir a concepção virginal de Jesus — e que, após o cumprimento desse
propósito, o casamento seguiu seu curso normal. Isso não diminui Maria, mas, ao
contrário, honra a instituição do casamento criada por Deus. A ideia de que a
virgindade seria um estado espiritualmente superior é um conceito ascético
posterior, não um ensinamento bíblico sobre o matrimônio. A leitura direta das
Escrituras aponta para uma conclusão clara: Maria, após cumprir seu papel único
no nascimento do Salvador, viveu a plenitude de sua vocação como esposa de José
e mãe de outros filhos.
A
Igreja Primitiva: Perseverando em Oração (Atos 1:14)
A
última menção a Maria nas Escrituras é, talvez, a mais reveladora: "Todos
estes perseveravam unanimemente em oração, com as mulheres, entre elas Maria,
mãe de Jesus, e com os irmãos dele". Sua posição é notável: ela não está
acima do grupo, recebendo orações. Ela está entre eles, como parte da
comunidade de crentes, unida no mesmo ato de súplica e dependência. Após este
versículo, Maria desaparece da narrativa bíblica. Este "silêncio
apostólico" é um poderoso argumento de que a veneração a ela não fazia parte
da fé apostólica original.
O
Silêncio Sobre sua Morte e a Doutrina da Assunção
O
completo silêncio da Bíblia sobre o fim da vida de Maria é teologicamente
revelador. Como uma criatura humana, filha de Adão, ela estava sujeita ao
caminho de todos os mortais: a morte. Se ela tivesse sido "assunta aos
céus" corporalmente, um evento tão extraordinário e sem precedentes quanto
as ascensões de Enoque e Elias, seria de se esperar que um fato de tamanha
importância ficasse indelevelmente registrado nas Escrituras.
A
doutrina da Assunção corporal é uma tradição tardia, definida como dogma apenas
em 1950, e sem base bíblica. Do ponto de vista do princípio Sola Scriptura,
a ausência de um mandato ou registro bíblico invalida a doutrina como um artigo
de fé. A conclusão mais lógica e fiel ao texto sagrado é que Maria, a fiel
serva do Senhor, morreu como qualquer outra pessoa, confirmando sua plena
humanidade e sua solidariedade com todos os crentes que aguardam a
ressurreição. Sua glória não reside em uma suposta exceção à mortalidade, mas
na fé perseverante que demonstrou ao longo de toda a sua vida terrena.
A
Proibição da Adoração: Idolatria e a Suficiência de Cristo
A
perspectiva protestante, fundamentada no Sola Scriptura, é inflexível
quanto ao objeto de adoração. O primeiro e segundo mandamentos (Êxodo 20:3-5)
proíbem categoricamente a adoração de qualquer ser ou imagem que não seja o
único Deus triúno. Dirigir orações, petições ou cânticos de louvor a qualquer
criatura, por mais exaltada que seja, constitui o pecado da idolatria.
A
Bíblia ensina que Maria, como todos os santos que partiram, está morta e
aguardando a ressurreição (1 Tessalonicenses 4:13-14). Ela não é onisciente
para ouvir milhões de orações simultâneas, nem onipresente para atender aos
fiéis em diferentes lugares, atributos que pertencem somente a Deus. A
tentativa de comunicação com os mortos (necromancia) é, aliás, explicitamente
condenada nas Escrituras (Deuteronômio 18:10-11).
Portanto,
na visão reformada, Maria não pode fazer nada pelos fiéis, pois ela está morta
e não possui poder de mediação. A honra devida a ela é a de reconhecimento e
imitação de sua fé, mas a adoração e a oração são prerrogativas exclusivas de
Deus, pois somente Ele é o ouvinte e o respondedor de orações.
A
Perspectiva da Reforma: Glória Somente a Cristo
Contrariamente
à caricatura popular, os reformadores do século XVI não buscavam apagar a
memória de Maria, mas reavaliar seu papel através de uma lente rigorosamente
bíblica.
A
linha divisória inegociável para todos os reformadores foi a rejeição de Maria
como mediadora ou intercessora. Esta não era uma questão secundária, mas o
coração do evangelho. A Escritura é enfática: "Porque há um só Deus e um
só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem" (1 Timóteo 2:5).
A palavra "um" (eis em grego) é exclusiva. A mediação de
Cristo é singular e perfeitamente suficiente, não necessitando de assistentes.
Atribuir a Maria um papel de mediação lança uma sombra sobre a suficiência de
Cristo e desvia a glória que pertence somente a Ele (Soli Deo Gloria).
Conclusão
A
análise bíblica e histórica converge para um retrato claro de Maria. Ela é, sem
dúvida, "bem-aventurada entre as mulheres" (Lc 1:42), uma mulher
extraordinária escolhida por Deus para um papel único. Sua fé humilde, sua
submissão corajosa e seu coração que engrandecia o Senhor são exemplos para a
Igreja em todas as eras.
Contudo,
as Escrituras a apresentam como uma criatura, uma discípula e uma pecadora que
se alegrou em "Deus, meu Salvador". Em cada momento, ela aponta para
longe de si mesma e em direção a seu Filho.
Portanto,
a maneira correta e bíblica de honrar Maria não é dirigir-lhe orações ou
atribuir-lhe títulos que pertencem somente a Cristo. A verdadeira honra a Maria
reside na imitação de sua fé.
A
perspectiva reformada não busca diminuí-la, mas garantir que nada nem ninguém —
nem mesmo a mais abençoada das mulheres — obscureça a glória preeminente e a
total suficiência de Jesus Cristo.

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