O
Salvador Vulnerável: Por Que Jesus Podia Adoecer
A
imagem de um Salvador que chora, sente fome e se cansa é fundamental para a fé
cristã. No entanto, a ideia de um Jesus doente pode parecer, para alguns, um
passo longe demais, quase uma ofensa à sua perfeição divina. Contudo, a
teologia reformada, ao aprofundar-se no mistério da encarnação, argumenta
precisamente o contrário: para ser plenamente humano e, portanto, um Salvador
perfeito, Jesus Cristo tinha que ser suscetível às enfermidades que afligem a
nossa carne. Sua capacidade de adoecer não diminui sua divindade, mas exalta a
profundidade de sua humanidade e a magnitude de sua obra redentora.
A
Necessidade de uma Humanidade Completa
A base
de todo o argumento reside na doutrina de que Cristo era "verdadeiro Deus
e verdadeiro homem". Se qualquer aspecto essencial da experiência humana
fosse removido de sua vida, sua humanidade seria incompleta, uma mera
aparência. Se Jesus não pudesse sentir a pontada da fome, a exaustão de um
longo dia ou a angústia de um coração aflito, Ele não seria verdadeiramente
"um de nós".
A
Escritura é clara ao descrever suas limitações humanas. Ele sentiu fome
após jejuar (Mateus 4:2), teve sede na cruz (João 19:28), experimentou cansaço
a ponto de dormir em meio a uma tempestade (Marcos 4:38) e sentiu uma angústia
tão profunda que seu suor se tornou como gotas de sangue (Lucas 22:44). Se Ele
compartilhou dessas fraquezas – que são, assim como as doenças, consequências
da vida em um mundo caído –, não há razão teológica para isentá-lo da
vulnerabilidade às enfermidades. Negar essa possibilidade é, em essência,
flertar com a antiga heresia do docetismo, que ensinava que Cristo apenas parecia
ser humano.
O
teólogo reformado Louis Berkhof afirma em sua "Teologia Sistemática"
que Cristo "se sujeitou voluntariamente à lei do pecado e da morte...
assumiu a natureza humana com todas as suas enfermidades a que está sujeita
depois da queda"[1]. Esta submissão às
"enfermidades" (no sentido amplo de fraquezas) é a chave. A doença é
uma das manifestações mais universais da fragilidade humana neste mundo.
A
Testemunha das Escrituras
A
Bíblia, embora não narre um episódio específico de Jesus doente, fornece o
alicerce teológico para essa conclusão. A passagem mais significativa é a
aplicação que o evangelista Mateus faz da profecia de Isaías:
"Ele
tomou sobre si as nossas enfermidades e levou as nossas doenças." (Mateus
8:17, citando Isaías 53:4)
Embora
o contexto imediato se refira às curas que Jesus realizava, o princípio é
profundo. Ele não era um observador distante das aflições humanas; Ele as
"tomou sobre si" e as "levou". Para carregar o peso de
nossas doenças de forma autêntica, Ele precisava ter um corpo capaz de
experimentá-las. Sua capacidade de curar não vinha de uma imunidade inerente em
sua carne, mas de seu poder como Filho de Deus.
Além
disso, a carta aos Hebreus reforça essa identificação completa:
"Porque
não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas;
porém, um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado." (Hebreus
4:15)
Para
se "compadecer" (literalmente, "sofrer com") de nossas
fraquezas, Ele precisava ser vulnerável a elas. A doença é, inegavelmente, uma
das maiores fraquezas humanas. Charles Hodge, outro pilar da teologia
reformada, comenta que Cristo "se tornou participante da carne e do
sangue, para que pudesse ser em todas as coisas semelhante a seus irmãos".
Ser semelhante a nós "em todas as coisas" deve incluir a
suscetibilidade à dor e à doença.
A
Exceção que Confirma a Regra: O Pecado
A
única característica humana que Jesus não possuía era o pecado. Esta é a
exceção divina que o qualifica como nosso Salvador. Ele era o "Cordeiro
imaculado e incontaminado" (1 Pedro 1:19). É crucial entender a distinção:
a doença é uma consequência do mundo caído pelo pecado, mas não é, em
si, um ato pecaminoso. Jesus pôde experimentar as consequências físicas da
Queda (morte, dor, sofrimento e, por inferência, doença) sem participar da
causa moral (o pecado original ou pessoal).
Ele
habitou um corpo sujeito à decadência do mundo pós-Éden, mas manteve um coração
perfeitamente obediente ao Pai. Sua vulnerabilidade física não contaminou sua
perfeição moral. Pelo contrário, foi nesse corpo vulnerável que Ele
"desfez as obras do diabo" e conquistou a vitória sobre o pecado e a
morte.
Conclusão:
Um Salvador Empático
A
afirmação de que Jesus podia adoecer não o rebaixa; ela o aproxima. Revela um
Salvador que não se manteve isolado e asséptico, mas que mergulhou por completo
na desordem da nossa existência. Ele conhece o gemido da dor, não apenas por
observação divina, mas por potencial experiência humana. Sua humanidade não foi
um disfarce, mas uma realidade plena e, por vezes, dolorosa.
Ao
aceitar a possibilidade de um Jesus enfermo, encontramos consolo. Nosso Sumo
Sacerdote entende nossas lutas mais profundas, não apenas as espirituais, mas
também as físicas. Ele se compadece de nós em nossa febre, em nossa dor e em
nossa fraqueza, pois Ele mesmo assumiu uma natureza que conhecia a fragilidade.
Sua perfeição não estava em uma saúde inabalável, mas em um amor que estava
disposto a se tornar vulnerável até às últimas consequências, por amor a nós.
Perguntas
sobre a Natureza da Humanidade de Cristo
1. A
Bíblia afirma que Jesus sentiu fome (Mateus 4:2), sede (João 19:28), cansaço
(João 4:6) e angústia (Lucas 22:44), que são fraquezas do corpo humano em um
mundo caído. Por que a vulnerabilidade à doença seria a única exceção a
essa regra? O que torna a doença teologicamente diferente da fadiga ou da fome?
2. Se ser
"plenamente humano" significa ter todas as características essenciais
da humanidade, a ausência de um sistema imunológico funcional e da
vulnerabilidade a patógenos não tornaria a humanidade de Cristo
fundamentalmente diferente da nossa e, portanto, incompleta?
3. Como
você interpreta Hebreus 4:15, que diz que Jesus foi "tentado em todas as
coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado"? A palavra
"fraquezas" (astheneia, em grego) no mesmo versículo não
abrange também as debilidades físicas, como a doença, que são uma parte
universal da experiência humana?
4. Se
Jesus nasceu como um bebê e "crescia em sabedoria, estatura e graça"
(Lucas 2:52), Ele passou por todas as fases do desenvolvimento humano. Esse
processo natural não incluiria o desenvolvimento de um sistema imunológico e a
exposição a vírus e bactérias, como qualquer outra criança da época?
Perguntas
sobre a Relação entre Pecado e Sofrimento
5. É
verdade que a doença é uma consequência da Queda e da entrada do pecado no
mundo. No entanto, a morte também é, e sabemos que Jesus morreu. Se Ele
pôde tomar sobre si a consequência final da Queda (a morte) sem ser pecador,
por que não poderia tomar sobre si uma consequência intermediária (a doença)?
6. Como
você entende Mateus 8:17, que diz: "Ele tomou sobre si as nossas
enfermidades e levou as nossas doenças"? Se Ele as levou de uma forma
vicária e real, isso não exigiria um corpo que fosse, por natureza, capaz de
experimentá-las para se identificar plenamente conosco?
7. Podemos
diferenciar entre a causa do sofrimento no mundo (o pecado) e a experiência
do sofrimento? Jesus não pecou, mas Ele certamente experimentou o sofrimento
deste mundo (tristeza, dor, rejeição). Por que a doença seria a única categoria
de sofrimento da qual Ele estaria misteriosamente isento?
Perguntas
sobre Lógica e o Silêncio das Escrituras
8. O fato
de a Bíblia não registrar Jesus ficando doente é uma prova de que Ele não
podia adoecer, ou apenas que os evangelistas não consideraram relevante
narrar tal evento para seus propósitos teológicos, que eram focados em sua
identidade, ensino, morte e ressurreição? Podemos construir uma doutrina a
partir do silêncio das Escrituras?
9. O
poder de Jesus para curar os outros vinha de sua divindade, não de uma
condição física inerente ao seu corpo humano. Sua capacidade de curar não
anularia a realidade de sua natureza humana vulnerável, assim como sua
onisciência divina não o impediu de, como homem, "crescer em
sabedoria"?
10.
Se Jesus fosse imune a doenças, isso não o
colocaria em uma posição menos empática como nosso Sumo Sacerdote? A beleza de
Hebreus 4:15 não está justamente no fato de que Ele pode
"compadecer-se" (sofrer junto) das nossas fraquezas, por ter
assumido uma natureza como a nossa em todos os seus aspectos, exceto o pecado?
11.
Para nos salvar, Cristo teve que ser nosso
substituto perfeito, vivendo a vida que não conseguimos viver. Parte universal
dessa vida é a vulnerabilidade física. Se o corpo de Jesus fosse imune a
doenças, Ele teria vivido uma experiência humana fundamentalmente diferente da
nossa. Como, então, Ele poderia ser verdadeiramente nosso representante? E como
seu consolo para os doentes poderia ser completo se sua empatia viesse apenas
de observação divina, e não da experiência real de habitar em uma carne frágil
como a nossa?
Perguntas sobre a Doutrina da Expiação (Soteriologia)
12.
A doutrina da expiação substitutiva afirma que
Cristo "se fez maldição por nós" (Gálatas 3:13), assumindo a
penalidade completa da Queda. A Bíblia (e a experiência humana) trata a doença
e a degeneração física como parte central dessa maldição. Se Jesus foi imune a
essa categoria de sofrimento, sua substituição por nós teria sido parcial? Ele
teria se esquivado de um aspecto crucial da maldição que veio redimir?
13.
Isaías 53, a principal profecia sobre a
expiação, descreve o Servo Sofredor como "homem de dores e que sabe o que
é padecer", alguém de quem "escondíamos o rosto".
Historicamente, muitas doenças causavam isolamento e desprezo. Se excluirmos a
possibilidade de doença da vida de Cristo, não estaríamos limitando o escopo do
sofrimento vicário que o profeta descreve, tornando-o um sofrimento mais
abstrato e menos visceralmente encarnado?
14.
Se a cura das nossas doenças foi
"comprada" pelas feridas de Cristo ("pelas suas pisaduras fomos
sarados", Isaías 53:5), como Ele poderia pagar um preço por algo que sua
própria natureza humana seria incapaz de experimentar? A validade do pagamento
não exige que o portador da dívida seja, ele mesmo, sujeito àquela mesma
penalidade?
Perguntas sobre o Paradoxo da Encarnação (Cristologia)
15.
Filipenses 2 descreve o esvaziamento (kenosis)
de Cristo, onde Ele "abriu mão" de suas prerrogativas divinas para
assumir a "forma de servo". Uma imunidade total e inerente à doença
não seria uma prerrogativa divina (ou, no mínimo, uma condição adâmica
pré-Queda, não a nossa)? Ao reter essa imunidade, Ele teria se
"esvaziado" completamente para ser "em tudo semelhante a seus
irmãos"?
16.
Jesus demonstrou ter poder divino sobre a
doença, curando os outros. Ele também demonstrou ter poder para não morrer,
dizendo: "Ninguém a tira [a vida] de mim, mas eu a dou por minha
espontânea vontade" (João 10:18). Sabemos que sua morte foi uma escolha de
submissão. Não seria mais consistente teologicamente que Ele pudesse
adoecer, mas escolhesse, em submissão ao Pai, não usar seu poder para evitar ou
curar a si mesmo, assim como Ele escolheu não descer da cruz?
17.
O corpo de Jesus era: (A) como o de Adão
antes da Queda (perfeito e imortal)? (B) como o nosso após a Queda
(mortal e sujeito à deterioração)? Ou (C) uma terceira categoria única e
sem precedentes?
Se a resposta for (A), como Ele pôde morrer, se o
corpo de Adão era condicionalmente imortal?
Se a resposta for (B), Ele necessariamente podia
adoecer, pois essa é a condição do nosso corpo.
Se a resposta for (C), em que sentido Ele era
"verdadeiramente humano" e nosso perfeito representante, e não uma
nova espécie?
Perguntas
sobre Biologia e a Natureza Humana
18.
Um sistema imunológico humano saudável funciona
através da exposição, aprendizado e combate a patógenos, um processo que muitas
vezes resulta nos sintomas que chamamos de "doença". Um corpo que
nunca fica doente teria: (A) um sistema imunológico fundamentalmente
não-humano? Ou (B) um sistema imunológico humano que nunca foi
verdadeiramente desafiado? Qual dessas duas opções se encaixa melhor na
doutrina de um Cristo que foi "tentado em todas as coisas"?
19.
Considerando o ambiente do século I na
Galileia, com saneamento precário e alta prevalência de patógenos, como um
corpo humano, especialmente o de um pregador itinerante em contato constante
com multidões e doentes, poderia biologicamente evitar qualquer tipo de
enfermidade sem uma intervenção divina contínua e milagrosa? E se assim fosse,
Ele estaria realmente vivendo uma vida humana normal?
Perguntas
sobre as Implicações para a Vida Cristã
20.
A teologia da cruz nos ensina que Deus usa a
fraqueza para manifestar seu poder (2 Coríntios 12:9-10). Se Jesus, nosso
modelo supremo, foi totalmente isento da categoria de fraqueza mais comum à
humanidade (a doença), isso não cria uma distância radical entre a experiência
Dele e a nossa? Não enfraquece o chamado para "participar dos seus
sofrimentos" (Filipenses 3:10), se Ele foi protegido de um sofrimento tão
universal?
[1]
Berkhof, Louis. Teologia Sistemática. Traduzido por Odayr Olivetti. 4ª
ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
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