A
Inspiração Divina da Bíblia
A
doutrina da inspiração da Sagrada Escritura é um pilar fundamental da fé
cristã, especialmente dentro da tradição reformada. Ela sustenta que a Bíblia
não é meramente um livro de sabedoria humana ou um registro falível de eventos
religiosos, mas a própria Palavra de Deus, divinamente outorgada à humanidade.
Este artigo explorará a natureza, a extensão e as implicações da inspiração
bíblica, fundamentando-se no testemunho da própria Escritura e na análise de
proeminentes teólogos reformados.
I. O
Fundamento Bíblico da Inspiração
Dois
textos do Novo Testamento são cruciais para a compreensão reformada da
inspiração. O primeiro e mais explícito é 2 Timóteo 3:16-17:
"Toda
a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para
a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja
perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra."
A
expressão-chave aqui é "inspirada por Deus", tradução do termo grego theópneustos
(θεόπνευστος). O teólogo B.B. Warfield argumenta que uma tradução mais literal
e precisa seria "soprada por Deus". Ele explica:
"O
que ele diz sobre a Escritura não é que ela seja 'aspirada por Deus' ou que
seja produto da 'inalação' divina sobre seus autores humanos, mas que é
'soprada por Deus', produto do sopro criador de Deus. Em poucas palavras, o que
é declarado por esta passagem fundamental é, simplesmente, que a Escritura é um
produto divino, sem qualquer indicação de como Deus operou para a sua
produção."¹
Essa
ênfase na origem divina é crucial. A Escritura não é um produto humano ao qual
Deus adicionou uma qualidade divina; ela é, em sua essência, um produto divino,
gerado pela energia criadora de Deus.
O
segundo texto fundamental é 2 Pedro 1:20-21:
"sabendo,
primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular
elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana;
entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito
Santo."
Esta
passagem elucida o "como" da inspiração. Ela nega a iniciativa humana
("não por vontade humana") e afirma a iniciativa e o controle
divinos. Os homens foram os instrumentos, mas o Espírito Santo foi o agente
principal que os "moveu" (do grego φερόμενοι, pheromenoi), um
termo que significa "ser levado" ou "carregado". Warfield
descreve essa ação como uma influência determinante, na qual os autores
"foram tomados pelo Espírito Santo e levados pelo seu poder para o alvo
que ele escolheu."¹
II. O
Testemunho de Cristo e dos Apóstolos
A
visão de Cristo e dos apóstolos sobre o Antigo Testamento reforça essa
doutrina. Jesus consistentemente tratou a Escritura como a autoridade final e
inquestionável. Ele a citou com a fórmula "Está escrito" (Mt 4:4, 7,
10) e afirmou sua perenidade ao declarar que "nem um i ou um til jamais
passará da lei, até que tudo se cumpra" (Mt 5:18).
Em
João 10:35, ao defender sua divindade, Jesus faz uma declaração incisiva sobre
a autoridade da Escritura: "e a Escritura não pode falhar". Warfield
observa que este argumento se baseia em uma frase casual de um Salmo,
demonstrando que, para Jesus, a autoridade indefectível da Bíblia se estende
"até às suas menores particularidades".¹
Os
apóstolos seguiram o exemplo de seu Mestre. Eles frequentemente igualavam a
fala da Escritura com a fala de Deus. Em Romanos 9:17, Paulo introduz uma
citação de Êxodo dizendo "Porque a Escritura diz a Faraó...", embora
no texto original seja Deus quem fala. Similarmente, em Gálatas 3:8, "a
Escritura... pré-anunciou o evangelho a Abraão". Essa identificação
demonstra a profunda convicção de que as palavras da Escritura são as palavras
de Deus.
III. A
Natureza da Inspiração: Orgânica, Não Mecânica
Como,
então, Deus produziu um livro que é plenamente divino e, ao mesmo tempo,
genuinamente humano, refletindo os estilos e personalidades de seus autores? A
teologia reformada responde com a doutrina da inspiração orgânica.
Essa
visão se opõe a duas alternativas extremas:
1. Inspiração
Mecânica (ou Teoria do Ditado): Esta teoria sugere que os escritores bíblicos
foram meros secretários passivos, transcrevendo palavras que Deus lhes ditava.
A teologia reformada rejeita essa visão, pois ela anula a agência humana
evidente na Bíblia. Como afirma Herman Bavinck, Deus trata os autores bíblicos
"não como blocos de madeira, mas como seres inteligentes e morais".³
2. Inspiração
Dinâmica (ou Liberal): Esta teoria postula que Deus inspirou apenas os
pensamentos ou conceitos, deixando os autores livres para expressá-los em suas
próprias palavras falíveis. Essa visão, conforme critica Heber Campos,
"humaniza o que é divino" e cria uma falsa separação entre ideias e
as palavras que as veiculam.⁴
A
inspiração orgânica sustenta que o Espírito Santo operou em e através
das faculdades, personalidades, pesquisas e estilos literários dos autores
humanos. Deus preparou providencialmente cada escritor para sua tarefa. O
teólogo R.C. Sproul, explicando a Declaração de Chicago, afirma:
"Deus,
em sua obra de inspiração, utilizou as personalidades distintas e os estilos
literários dos escritores que ele escolheu e preparou. [...] O que foi
sobrepujado ou vencido pela inspiração não foram as personalidades, os estilos
ou os métodos literários humanos, e sim as tendências humanas para a distorção,
a mentira e o erro."²
Assim,
a Bíblia é, simultaneamente e em sua totalidade, a Palavra de Deus e a palavra
dos homens, sem que sua divindade anule sua humanidade, e sem que sua
humanidade comprometa sua origem e autoridade divinas.
IV. A
Extensão da Inspiração: Plenária e Verbal
A
doutrina reformada afirma que a inspiração é tanto plenária quanto verbal.
- Inspiração
Plenária: Significa que a inspiração se estende a todas
as partes da Escritura. Não há distinção entre partes mais ou menos
inspiradas. Como Paulo afirma, "Toda a Escritura é inspirada
por Deus".
- Inspiração Verbal:
Significa que a inspiração se estende às próprias palavras dos
manuscritos originais, não apenas às ideias gerais. Os pensamentos são
inseparáveis das palavras que os expressam. O argumento de Paulo em
Gálatas 3:16, que se baseia na forma singular da palavra
"descendente" (e não "descendentes"), demonstra a
importância que os apóstolos davam às palavras exatas do texto.
A
Declaração de Chicago sobre a Inerrância Bíblica resume bem essa convicção no
Artigo VI: "Afirmamos que toda a Escritura e todas as suas partes, até as
próprias palavras do original, foram dadas por inspiração divina."²
V. A
Consequência da Inspiração: Autoridade e Infalibilidade
A
consequência lógica da inspiração divina é a autoridade absoluta e a
infalibilidade da Escritura. Se a Bíblia é "soprada por Deus", então
sua autoridade é a autoridade de Deus. Ela é, portanto, a regra infalível de fé
e prática para o crente.
João
Calvino expressou essa reverência de forma contundente, afirmando que a
Escritura "emanou de Deus somente, não se misturando com nada que seja
humano".⁴ Da mesma forma, Agostinho escreveu: "creia firmemente que
nenhum dos escritores canônicos 'errou em nada daquilo que escreveu'".³
Isso significa que a Bíblia é totalmente confiável e verdadeira em tudo o que
ensina.
VI. A
Inspiração e o Registro de Falsidades (Como as Palavras de Satanás)
Uma
questão comum que surge é: como a Bíblia pode ser a Palavra de Deus, inerrante
e inspirada, se ela registra as palavras de Satanás, mentiras de homens e atos
pecaminosos?
A
resposta reside em uma distinção crucial: a diferença entre o que a Bíblia
registra e o que ela ensina como verdade. A inspiração garante a absoluta
fidelidade e precisão do registro. No entanto, ela não endossa a
veracidade de tudo o que é registrado. Heber Campos, citando o teólogo Norman
Geisler, esclarece este ponto:
"Nem
tudo o que a Bíblia contém é verdadeiro; somente o que a Bíblia ensina é
verdadeiro. O registro de todas as palavras está debaixo da inspiração de Deus,
mas somente o que é ensinado é revelação. A Bíblia ensina somente a verdade (Jo
17.17), mas contém algumas mentiras, como, por exemplo, a mentira de Satanás
(Gn 3.4) [...]. A inspiração cobre a Bíblia plenamente, no sentido em que registra,
fiel e verazmente, até mesmo as mentiras e os erros dos seres pecadores."⁴
Por
exemplo, em Gênesis 3:4, a Bíblia registra de forma inerrante a mentira de
Satanás: "É certo que não morrereis". A inspiração garante que temos
um registro exato da falsidade dita pela serpente. Contudo, o contexto
narrativo e o restante da Escritura não ensinam essa mentira; pelo
contrário, eles demonstram cabalmente suas consequências desastrosas, ensinando
a verdade sobre a santidade de Deus, o juízo sobre o pecado e a natureza
enganadora do diabo.
A
Bíblia ser a Palavra de Deus não significa que cada palavra nela foi dita
por Deus, mas que tudo nela foi registrado fielmente sob a inspiração de
Deus. Deus nos deu um registro perfeito e verdadeiro, inclusive das
mentiras de Satanás, para que pudéssemos aprender a verdade.
Imagine
que um historiador renomado decide escrever a biografia definitiva de um grande
herói nacional. Ele é o autor do livro. Sua mente, seu propósito e sua
estrutura guiam toda a obra.
1. O
Autor Usa Múltiplas Fontes e Citações
Para
que sua biografia seja completa e honesta, o autor não escreve apenas seus
próprios pensamentos. Ele:
- Cita cartas e
diários do herói: Registrando as palavras exatas do
protagonista.
- Transcreve
discursos de aliados: Incluindo as palavras de apoio de
amigos e generais.
- Registra as
palavras de críticos e inimigos: Ele pode incluir no
livro uma citação de um rival político que disse: "Este homem vai
levar o país à ruína!".
2. As
Citações Não Anulam a Autoria
Agora,
a pergunta crucial: quando você lê a citação do inimigo ("Este homem vai
levar o país à ruína!"), você pensa que o biógrafo está concordando com
ela? Claro que não. O fato de as palavras do inimigo estarem no livro não
significa que elas sejam a opinião do autor. Pelo contrário, o autor incluiu
essa citação por um motivo específico:
- Para mostrar a
oposição que o herói enfrentou.
- Para demonstrar
como o herói provou que seus críticos estavam errados.
- Para dar um
retrato fiel e completo da situação histórica.
Ninguém
jamais pegaria esse livro e diria: "Este livro não tem um autor, é apenas
uma coleção de falas de pessoas diferentes". Todos reconhecem que o
biógrafo é o autor soberano da obra. Ele selecionou, organizou e apresentou
todas essas falas para cumprir o seu propósito de contar a história verdadeira
do seu herói.
3.
Aplicando a Analogia a Deus e à Bíblia
Agora,
aplique exatamente o mesmo raciocínio à Bíblia:
- Deus é o Autor
Mestre: Ele tem um propósito soberano e uma única
grande história para contar: a história da redenção da humanidade através
de Jesus Cristo.
- Ele Usa Múltiplas
"Fontes": Para contar essa história, Deus
inspirou autores humanos (Moisés, Davi, Paulo, João) a registrarem
fielmente:
- As palavras do
"Herói" (Deus/Jesus): "Eu sou o caminho,
a verdade e a vida".
- As palavras dos
"Aliados" (Profetas e Apóstolos):
"Assim diz o Senhor...".
- As palavras dos
"Inimigos" (Satanás, falsos profetas, fariseus):
"É certo que não morrereis".
- A Autoria de Deus
Permanece Absoluta
O fato
de a Bíblia registrar as palavras de Satanás não significa, nem de longe, que
Deus concorda com ele ou que Ele deixa de ser o Autor.
Assim
como o livro do biógrafo, do início ao fim, comunica a visão e o propósito do
biógrafo, a Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse, com todas as suas vozes e
personagens, comunica a mensagem e o propósito de Deus.
O fato
de a Bíblia conter falas de outras pessoas, incluindo o próprio diabo, não
apenas não anula a autoria de Deus, mas na verdade serve ao propósito
do Autor Divino de nos dar um retrato completo, fiel e verdadeiro da história
da salvação.
Portanto,
a inspiração divina não purifica o texto de registros de maldade ou falsidade.
Em vez disso, ela garante que esses eventos e falas sejam registrados com
perfeita exatidão para o nosso ensino (Romanos 15:4), servindo como advertência
e revelando a profundidade do pecado humano e a necessidade da redenção em
Cristo.
VII.
Conclusão
A
doutrina reformada da inspiração afirma que a Bíblia é a Palavra de Deus,
"soprada" por Ele através de um processo orgânico que utilizou
plenamente as personalidades e habilidades de autores humanos. Essa inspiração
é plenária e verbal, estendendo-se a todas as partes e palavras dos escritos
originais. Como resultado, a Escritura possui autoridade divina inquestionável
e é infalível em tudo o que afirma. Seu propósito final, como lembra o apóstolo
Paulo, não é meramente acadêmico, mas redentor: tornar-nos "sábio para a
salvação pela fé em Cristo Jesus" (2 Tm 3:15).
Referências
¹
Benjamin Warfield, A Inspiração e Autoridade da Bíblia: A Clássica Doutrina
da Palavra de Deus, ed. Vagner Barbosa, Wilton Lima, e Sebastiana Gomes de
Paula, trad. Maria Judith Prado Menga, 1ª edição (São Paulo, SP: Editora
Cultura Cristã, 2010).
² R.
C. Sproul, Posso Crer na Bíblia?, ed. Tiago J. Santos Filho, trad.
Francisco Wellington Ferreira, 1ª Edição, vol. 2, Questões Cruciais (São José
dos Campos, SP: Editora FIEL, 2013).
³ Herman Bavinck, Prolegômena, ed. John Bolt,
trad. Vagner
Barbosa, 1ª edição, vol. 1, Dogmática Reformada (São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 2012).
⁴
Heber Campos, Eu Sou: Doutrina da Revelação Verbal, ed. Tiago J. Santos
Filho, Primeira Edição, vol. I (São José dos Campos, SP: Editora FIEL, 2017).
⁵ J.
Ireland, “Inspiração, História da doutrina da”, in Dicionário Bíblico Lexham,
ed. John D. Barry (Bellingham, WA: Lexham Press, 2020).
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