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A Poligamia sob o Prisma Bíblico: Uma Defesa da Monogamia como Vontade Imutável de Deus

A Poligamia sob o Prisma Bíblico: Uma Defesa da Monogamia

A Poligamia sob o Prisma Bíblico: Uma Defesa da Monogamia como Vontade Imutável de Deus

O casamento, como instituição divina, encontra seu fundamento e propósito na Palavra de Deus. Contudo, ao longo da história, práticas como a poligamia têm gerado debates sobre sua legitimidade à luz das Escrituras. Este artigo defende a tese de que a poligamia é uma transgressão do plano original e imutável de Deus para o casamento. Embora tolerada em período específico da história da redenção, a poligamia nunca foi a vontade prescritiva de Deus. Pelo contrário, ela representa um desvio do ideal monogâmico estabelecido na Criação, um ideal que, por refletir o caráter de um Deus que não muda, permanece como a única norma para o Seu povo.


1. O Padrão da Criação: "Um Homem e Uma Mulher"

A base para a compreensão do casamento bíblico não se encontra nos costumes do Antigo Oriente, mas na ordem da Criação. Desde o início, o desígnio de Deus foi inequivocamente monogâmico. Em Gênesis, lemos: "Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou" (Gênesis 1:27). A narrativa se aprofunda no capítulo 2, onde Deus forma uma mulher para um homem, Adão, e estabelece o princípio fundamental: "Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne" (Gênesis 2:24).

Este padrão original é tão fundamental que, mesmo após a devastação do mundo pelas águas do Dilúvio, Deus o reafirma ao preservar a humanidade através de quatro homens — Noé e seus três filhos — cada um com sua única esposa (Gênesis 7:7, 13). Neste recomeço da raça humana, Deus não institui um novo modelo, mas retoma o padrão monogâmico como a base da família, demonstrando ser este o Seu desígnio contínuo e inalterado.

O teólogo Jochem Douma destaca a profundidade dessa união: "Se levarmos a sério essa comunhão, a qual inclui corpo e alma, então a poligamia será, para nós, algo absolutamente ilegítimo."1 O próprio Jesus Cristo, ao ser questionado sobre o divórcio, apela para esta instituição primeira, afirmando: "não foi assim desde o princípio" (Mateus 19:8). Ao fazer isso, Ele não apenas condena o divórcio, mas reafirma a monogamia como a intenção original e perpétua do Criador. Hernandes Dias Lopes reforça essa visão, declarando: "Deus não criou duas mulheres para um homem nem dois homens para uma mulher (Gn 2.24). [...] O absoluto propósito de Deus para a raça humana em relação ao casamento sempre foi e há de ser a monogamia."2

2. A Imutabilidade de Deus e Sua Vontade

Um atributo fundamental de Deus é a Sua imutabilidade. Ele declara: "Eu, o SENHOR, não mudo" (Malaquias 3:6). Da mesma forma, a Escritura afirma que Jesus Cristo "é o mesmo ontem, hoje e para sempre" (Hebreus 13:8). Se a vontade de Deus para o casamento foi estabelecida na perfeição da Criação como a união exclusiva entre um homem e uma mulher, essa vontade não pode mudar, pois ela emana de Seu caráter imutável.

Argumentar que Deus sancionou a poligamia posteriormente seria introduzir uma contradição no próprio ser de Deus. A verdade é que a lei moral de Deus, que reflete Sua santidade, não é fluida. A poligamia, introduzida pela primeira vez na linhagem de Caim por Lameque (Gênesis 4:19), é apresentada como uma inovação humana, não uma diretriz divina. O reformador Wolfgang Musculus comenta sobre essa passagem: "O casamento, pelo qual duas pessoas são unidas em uma só carne, é recomendado como instituído por Deus no início do mundo. A poligamia, porém, foi introduzida mais tarde pela fantasia humana."3

3. A Poligamia no Antigo Testamento: Tolerância Divina, Não Aprovação Moral

Como, então, explicar a prática da poligamia por figuras proeminentes como Abraão, Jacó e Davi? A resposta reside na distinção crucial entre a permissão de fato de Deus e Sua aprovação moral. O teólogo reformado François Turretini argumenta que a poligamia foi permitida "por uma permissão de fato (i.e., por mera tolerância, não por aprovação), para que dessa forma fossem isentos de punição civil no tribunal terreno, porém não diferentemente da punição divina no tribunal celestial."4

Deus, em Sua soberania, permite (por mera tolerância, não por aprovação) muitas coisas que Ele proíbe em Sua lei. Ele permitiu a dureza de coração de Israel em relação ao divórcio (Mateus 19:8), mas isso não tornava o divórcio por qualquer motivo moralmente correto. Da mesma forma, a poligamia foi tolerada. Como afirma John Murray, ela foi "uma concessão temporária por causa da fraqueza e pecaminosidade humana até a vinda de Cristo."5

Além disso, a Escritura não esconde as consequências desastrosas dessa prática. A narrativa bíblica funciona como uma advertência contínua contra a poligamia. Vemos o ciúme e a rivalidade entre Sara e Hagar, entre Lia e Raquel, e entre Ana e Penina. Observamos a intriga, o estupro e a rebelião que assolaram a casa de Davi, e a apostasia de Salomão, cujas muitas esposas "lhe perverteram o coração" (1 Reis 11:3-4). David Merkh resume o testemunho bíblico: "A Bíblia deixa claro que os indivíduos da história de Israel que se desviaram do plano monogâmico de Deus e praticaram a poligamia o fizeram contra a vontade do Criador e, em última análise, em prejuízo próprio."6

Analisando 2 Samuel 12 – Deus Deu e Tomou as Mulheres de Davi?

Apesar dessas consequências, alguns recorrem ao texto de 2 Samuel 12:8 para defender que o próprio Deus sancionou a poligamia. Na passagem, o profeta Natã diz a Davi: “Dei-te a casa de teu senhor e as mulheres de teu senhor em teus braços...”. Este texto, no entanto, não deve ser interpretado como uma aprovação moral da poligamia, mas como uma expressão da soberania de Deus sobre o reino. Ao entregar a "casa de Saul" a Davi, Deus estava transferindo a totalidade da herança real, que, segundo os costumes da época, incluía os bens e mulheres do rei anterior. A ênfase não está na aprovação da prática, mas na afirmação de que toda a ascensão e o poder de Davi vieram da mão de Deus.

O propósito divino aqui é pedagógico, e o complemento do texto no verso 11 é crucial para o entendimento: “Assim diz o SENHOR: Eis que da tua própria casa suscitarei o mal sobre ti, e tomarei tuas mulheres à tua própria vista, e as darei a teu próximo”. A mesma mão soberana que "deu" é a que "toma". Isso não significa que Deus cometa ou sancione o adultério, mas demonstra Sua propriedade sobre todas as coisas e como as consequências do pecado se tornam uma ferramenta de ensino em Suas mãos. Em Sua soberania, Deus pode entregar os homens aos seus próprios pecados, não como um ato de aprovação, mas para lhes mostrar o erro, como afirma Romanos 1:24: “Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração...”. De modo semelhante, Deus permite que Davi assuma a realeza com tudo o que ela implicava para, em seguida, usar o fruto de seu próprio pecado como instrumento de juízo, ensinando sobre a gravidade da desobediência.

Aprofundando a evidência interna do Antigo Testamento, Norman Geisler sistematiza vários argumentos contra a prática: Primeiro, a monogamia foi ensinada por precedência. Deus deu a Adão apenas uma mulher e a Eva apenas um homem. Esse princípio deve reger toda a humanidade em todos os tempos. Segundo, a monogamia foi ensinada por preceito. Deus falou a Moisés: Tampouco para si multiplicará mulheres… (Dt 17.17). Terceiro, a monogamia foi ensinada como um preceito moral contra o adultério. Assim diz a lei de Deus: Não cobiçarás […] a mulher do teu próximo [singular] (Êx 20.17). Isso implica que havia somente uma esposa legítima que o próximo podia ter. Quarto, a monogamia foi ensinada pela proporção populacional. Em geral, o nascimento de homens e mulheres é semelhante. Se Deus tivesse designado a poligamia, deveria existir um número muito maior de mulheres do que de homens. Finalmente, a monogamia é ensinada por meio das severas consequências decorrentes da poligamia. Todas as pessoas que praticaram a poligamia no Antigo Testamento sofreram amargamente por isso. Salomão é um exemplo clássico (1Rs 11.4).7

As leis mosaicas que regulavam as heranças em lares polígamos (Deuteronômio 21:15-17) não endossavam a prática; antes, mitigavam a injustiça dentro de uma estrutura social já corrompida pelo pecado.

4. A Restauração no Novo Testamento

Com a vinda de Cristo, a "tolerância temporária" (não por aprovação) cessa e o padrão original é restaurado com clareza cristalina. O Novo Testamento é inequivocamente monogâmico. O apóstolo Paulo instrui: "cada um tenha a sua própria esposa, e cada uma, o seu próprio marido" (1 Coríntios 7:2). A qualificação para a liderança na igreja — que o bispo e o diácono sejam "esposo de uma só mulher" (1 Timóteo 3:2, 12; Tito 1:6) — estabelece a monogamia como o padrão exemplar para toda a comunidade cristã. Charles Hodge argumenta contra a inferência de que outros membros poderiam ser polígamos: "Isso não implica que um homem pode ser polígamo, como dizer que um bispo não deve ser cobiçoso de lucros espúrios nem brigão não implica que outros homens podem ser cobiçosos ou contenciosos."8 O padrão para o líder é o padrão para todos.

Finalmente, a mais profunda ilustração teológica do casamento no Novo Testamento torna a poligamia impensável. Em Efésios 5, Paulo compara a união do marido e da esposa à união mística entre Cristo e Sua Igreja. Cristo tem uma noiva, a Igreja. A Igreja tem um noivo, Cristo. D. P. Kingdon observa que, se a poligamia fosse uma opção, "seria inteiramente impróprio o paralelo de Paulo entre a união mística de Cristo e sua Igreja e a união de marido e esposa."9

A Impossibilidade do Amor Genuíno na Poligamia

A ordem de Efésios 5:25 – “Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja” – expõe a incompatibilidade fundamental entre a poligamia e o amor cristão. O amor sacrificial, exclusivo e indivisível que Cristo tem por sua noiva, a Igreja, é o modelo para o marido. É logisticamente e emocionalmente impossível replicar esse tipo de amor dedicado e singular com múltiplas parceiras. A exclusividade exigida por esse amor não pode ser dividida. Inevitavelmente, em um arranjo polígamo, o amor sacrificial é substituído por desejo, favoritismo ou a mera administração de um harém, algo diametralmente oposto ao mandamento bíblico.

Conclusão

A poligamia é pecado porque viola a ordem da Criação, contradiz o caráter imutável de Deus, subverte a analogia de Cristo e da Igreja e, como a história bíblica demonstra, invariavelmente semeia discórdia e sofrimento. A tolerância de Deus a essa prática no Antigo Testamento deve ser entendida como uma permissão (por mera tolerância, não por aprovação) soberana dentro de um contexto de dureza de coração, e não como uma sanção moral. A vontade de Deus, revelada desde o princípio e reafirmada por Cristo e pelos apóstolos, é a união permanente, fiel e exclusiva de um homem e uma mulher, selada por um amor que espelha o de Cristo por Sua Igreja. Este é o padrão divino, a expressão da sabedoria do Criador e o caminho para a bênção na aliança matrimonial.


Notas de Rodapé

  1. Jochem Douma, Os Dez Mandamentos: Manual para a vida Cristã, 1ª edição (Recife, PE: Editora CLIRE, 2019), 291.
  2. Hernandes Dias Lopes, Mateus: Jesus, o Rei dos Reis, 1ª edição (São Paulo: Hagnos, 2019), 581.
  3. John L. Thompson, Timothy F. George, e Scott M. Manetsch, Gênesis 1–11, Comentário Bíblico da Reforma (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2015), 258.
  4. François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, vol. 2, 1ª edição (São Paulo, SP; Cambuci, SP: Editora Cultura Cristã, 2010), 160.
  5. Citado em D. P. Kingdon, “Família”, in Novo Dicionário de Teologia (São Paulo: Hagnos, 2011), 424.
  6. David Merkh, Comentário Bíblico Lar, Família & Casamento (São Paulo, SP: Hagnos, 2019), 160.
  7. Norman Geisler, citado em Hernandes Dias Lopes, Mateus: Jesus, o Rei dos Reis, 1ª edição (São Paulo: Hagnos, 2019), 582.
  8. Charles Hodge, Teologia Sistemática, 1ª edição (São Paulo: Hagnos, 2001), 1310.
  9. D. P. Kingdon, “Família”, 424.

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